POEMA A GOIÂNIA

Autora Rosarita Fleury - Poema retirado do livro Pétalas

Publicado em 22/09/21

POEMA A GOIÂNIA

POEMA A GOIÂNIA

 

Premiado em julho de 1942 pela

 Academia Goiana de Letras

 

 

 

 

- Ó visitante amigo,

você que mora longe, tão distante,

e tem seu lar num pedaço pequenino de terra;

você que, falando em geografia, muitas vezes erra,

porque nasceu cercado de barulhos,

cresceu cercado de barulhos

e viveu, sempre, nesse inferno a que chamam civilização.

Você, que nunca soube o prazer de se andar devagar

porque, já muito cedo, correu pra não perder os bondes

que iam à cidade

e, em sua mocidade, quase não teve tempo de olhar o céu,

porque olhar o céu não custa nada e também não dá dinheiro

e, hoje em dia, no mundo inteiro,

pensam mais em riquezas e meios de gastar!

Pois olha, viajante amigo,

é para você mesmo que hoje quero falar:

É, justamente, pra você, que aqui do meu sertão,

da cidade mais linda e mais faceira

de quantas povoaram as terras do oeste brasileiro,

vou contar o meu poema-canção.

Lá longe, onde as montanhas parecem tocar o céu,

a noite e o dia lutam desesperadamente.

As estrelas estão pálidas, assustadas

e, cada vez mais pálidas,

fogem acompanhando as sombras que se vão.

Uma aragem vadia dança aqui, acolá.

Bole no capinzal cheiroso,

faz cócegas nos enormes buquês de caraíbas,

sacode, num riso miudinho, as folhas das rasteiras guabirobas

vai daqui, vai dali, até abrir o leque verde das palmeiras.

Um arrepio enorme sacode os buritis.

Cantam sabiás sonoros, patativas alegres, inocentes pardais;

há gritos estridentes de verdes periquitos,

curiós esquisitos e guaxes barulhentos.

Seriemas pernaltas bancam as pianistas

e cantam, sem parar, escaladas ascendentes, descendentes,

enquanto as saracuras, mais tímidas e ariscas

fazem o contra-canto.

Mais junto às ruas, andorinhas equilibristas

andam nos fios elétricos, fuxicam os telhados,

bordam letras chinesas no chão.

Chegou a madrugada!

A carroça do padeiro rodou sobre a calçada.

Um cachorro latiu fundo, para cumpri a obrigação.

Um aluno do Tiro de Guerra olhou, olhou

e levou o pão que o padeiro deixara na casa do vizinho.

Um gato farrista saltou do muro, arrepiado

em seu pelo de arminho.

O céu ficou vermelho, vermelhinho,

e um novo dia raiou!

Já o sol escancarou sua janela

e a luz, aos borbotões, se projetou por ela.

Em volteios sutis se desprendeu da altura,

afogou em clarões a madrugada escura,

embebedou de ardor as camadas de ar,

suplantou o luar,

e, requebrando alvissareira,

desceu até tocar a perfumada cabeleira

da terra adormecida.

Goiânia, espreguiçou-se inteira...

Seu corpo moreno e núbil, requeimado do sol

e cheirando terra brasileira,

espalhado no chão,

flor perfumada morena e esquisita,

dessas que só vicejam no sertão.

Os dedos longos e brancos do sol acariciram, de leve,

a pele macia da cidade dormente,

envolta, ainda em esgarçada garoa matinal.

Depois, numa conquista ousada e Dom-Juanesca,

rasgaram-lhe a camisola branca da neblina,

e Goiânia, a cidade que ainda ontem era menina,

nua e formosa, soberba de altivez,

se ergue do chão:

qual moderna Phryneia,

Goiânia vai ser julgada aos olhos da Nação.

Há em todas as ruas um vai-vém sem parar.

Abrem-se as casas

e delas vem a vida em suas ruas brincar.

Há grupos de crianças alegres, joviais,

meninos, moças, rapazes, alguns falando demais,

outros sisudos, outros pensativos,

todos em uniformes,

todos levando livros, muitos livros.

Vão ao Ginásio, ao Colégio, ao Grupo Escolar.

Formas imensas que o cérebro humano

sabem, com amor, burilar,

para deles extrai o progresso de amanhã.

Um pouco abaixo, o Cinema.

Revestido de cinzas, com pintas prateadas,

de linhas frias, de um belo esquisito,

faz a gente pensar em coisas já passadas,

em gôndolas antigas, em pinturas do Egito.

Espalhados no chão, enchendo ruas ainda em formação,

há bangalôs rosados, coloridos e vivos,

a viver, lado a lado com modernos sobrados.

São lares onde há sempre o sorrido de uma mulher bonita,

um jardim que é só flor,

e a graça infinita de um berço pequenino,

todo de rendas e fita,

para acolher o fruto desse amor.

Vem, depois, a Avenida Anhanguera.

Imponente e sisuda, faz pensar no vulto varonil

do bandeirante paulista que primeiro desbravou nossos sertões.

Ela não guarda a doçura suave dos formosos bairros residenciais.

É, antes, a moldura severa de uma tela

em que se prendeu o lado prático da vida:

Banco do Brasil e mais, muito mais,

bares, frutarias,

bilhetes de loteria, grandes casas comerciais

e, movimentando esse estranho formigueiro,

o Deus dinheiro, o Deus dinheiro.

Longe, bem junto aos braços verdes das árvores frondosas,

vivem os bairros pobres:

Botafogo cosmopolita, onde cada casa é caixa de segredo

a ocultar uma história esquisita.

Lá em cima a Vila Nova, a sonhadora e repousante Vila Nova.

E, nas noites de lua cheia,

Vila Nova, romântica, sonha que cresceu muito,

que é o bairro mais rico de Goiânia

e que toda a cidade estendida a seus pés

está em muda e comovente adoração.

Bairro Popular vive cheio de gente.

Sente-se que ali a vida é mais gostosa e mais alegre.

Um ramo enorme de trepadeira em flor,

baixou-se, em pudor, cobrindo a janela indiscreta

que não sentiu pejo em mostrar ao povo da rua

a felicidade insultante de um casal inda calouro!

O céu está amarelado, cor-de-ouro.

Em bandos brincam as crianças:

chicotinho queimado, cabra-cega,

esconde-esconde nas moitas de bonina...

Ah! meus deliciosos tempos de menina!

Depois, o bairro Operário, o mais belo de todos.

Seus lares pequeninos se unem pelas mãos cheirosas e faceiras

de floridas e variadas trepadeiras.       

Com o chegar da tarde eis que chegam também

os operários de cidade, verdadeiros artistas

sob o manto do anonimato sempre ocultos.

E a gente vê, provocando os céus,

desafiando vendavais e furacões,

esses colossos de cimento armado.

Vê e fica pensando num corpo recurvado de cansaço,

nuns pobres olhos castigados pelo sol

e nas mãos calejadas, nodosas,

que planaram o cimento,

tirando, da massa bruta, a maravilha que hoje forma a cidade.

E a gente abençoa a classe operária.

Abençoa e pede a Deus que a torne, em sua humilde pobreza,

milionária, milionária de felicidade.

Mais adiante a Vila Militar.

Na Vila Militar só se vê fardas.

Oficiais graduados, cabos, sargentos, guardas,

amigos protetores da cidade, procuram os seus lares.

Em cada porta a companheira saudosa

que coseu, que lavou, e jantar preparou,

e depois se enfeitou, se alindou,

na expectativa feliz da chegada de seu amor.

Dentro da cozinha alegre e hospitaleira,

o café pretinho, cheiroso e brasileiro

está fumegando, está convidando...

E a Vila Militar cresce e se expande

na expansão de seus filhos, a criança louçã

que já pensa em fazer parte do batalhão de amanhã.

Cortando o capinzal esverdeado,

a estrada larga e formosa, que vai até perder de vista,

parece uma cobra imensa e preguiçosa,

refestelada no chão.

Na ponta dessa estrada está Campinas.

Ela olha Goiânia. Olha e fica pensando

em como cresce e se alinda essa Goiânia

que viu nascer e quer bem.

E Campinas estende os seus braços de casas...

Estende-os, estende-os numa ânsia incontida de chegar até cá,

De abraças a cidade todinha a ser Goiânia também.

O sol, enorme e vermelho, parece uma bola de fogo

que as nuvens chutam para o gol do crepúsculo.

Mansamente a tarde vai morrendo.

O Lago das Rosas tenta prender em seu espelho líquido

os últimos farrapos de luz que o sol deixou cair na terra.

As árvores estão todas rezando a Ave-Maria

e, contra o fundo inda claro do horizonte,

o perfil severo do buritizal

lembra monges serenos em doce ritual.

A terra inteira é místico convento,

a natureza se ajoelha a se põe a rezar!

As luzes se acendem num instante

e, em Goiânia, outra vida se inicia.

Na Avenida Goiás

os bancos estão cheios de casais.

Goiânia ama, vibra, dá expansão a seu amor.

E a gente vai subindo, devagar.

A Praça Cívica, a esta hora, está silenciosa.

Apenas canta, em surdina, pela boca de sua fonte luminosa.

Até parece que a fonte seduziu o arco íris

e agora se compraz em atirá-lo ao céu em gotinhas de cor.

No Palácio verde escuro e severo,

mãos femininas cerram lentamente as cortinas.

Vai repousar aquele que, no horror de um cárcere infamante,

Sonhou uma pátria forte e independente

onde o povo, descuidado e feliz, pudesse pensar

e agir livremente.

A seus pés Goiânia dormirá também.

E você, viajante amigo, que veio de tão longe

e fez a grande marcha para o Oeste, não quererá voltar.

Há de ficar conosco tão feliz e à vontade como em sua casa

porque aqui ninguém se sente estrangeiro.

Goiânia quer bem a todos e sabe fazer, de cada homem,

um bom e honesto brasileiro.

Sei que você ficará e sonhará o sonho

que todos guardamos no coração:

Dia virá, talvez mais logo do que supomos,

nossa Goiânia será tal sol irradiando vida e calor

aos pontos mais longínquos do sertão.

Dia virá em que tenhamos conosco a Capital da Nação.    

 

Rosarita Fleury

Retirado do Livro

Pétalas, pgs. 51 à 58